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Trólebus & Veículos Elétricos Brasileiros:
Artigos & Entrevistas - Entrevista Hélio Ronzani 06/08/2021


 

Hoje temos a honra de conversar com Hélio Ronzani, considerado um dos maiores especialistas do Brasil em Engenharia Industrial e de Produtos, especificamente na área de Interiores. Hélio trabalhou na Mafersa e na Alstom Brasil.

Aproveitamos a oportunidade para agradecer ao Milton Adalton do Movimento Respira São Paulo, que tornou possível a realização desta entrevista.

 

Confira mais detalhes da entrevista abaixo:

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Hélio Ronzani

(Acervo pessoal)

TB: Hélio primeiramente peço que se apresente e depois nos conte como iniciou sua carreira na Mafersa. Em que setor você trabalhou?
 

HR: Olá a todos os expectadores desse site Trólebus Brasileiros. Eu sou o Hélio e trabalhei na Mafersa por quase 20 anos. Sou Tecnólogo formado na FATEC em Metalurgia e Soldagem e MBA em Gestão de Projetos e Processos Especiais, também pela FATEC aqui de São Paulo – Capital.


Entrei na MAFERSA em 20 de junho de 1.978, buscando estágio para meu colegial técnico, que obrigava você no 4º ano a trabalhar ou estagiar no ramo e como eu fiz curso técnico de mecânica, procurei e achei um emprego na MAFERSA...


Hoje, após trabalhar por quase 20 anos na MAFERSA e mais 18 anos na Alstom, sempre na mesma área de Interiores, posso dizer que fui considerado um dos maiores especialistas nessa área do Brasil, mas não gosto de ficar falando muito de mim, porque hoje em dia as pessoas são passagens nas empresas somente...

Bom... eu trabalhei na Engenharia Industrial e na Engenharia de Produtos de ambas empresas. Em 1.986, movida pela necessidade de se dedicar ao mercado dos ônibus em geral, a Engenharia de Produtos foi dividida e se criou um Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, ao qual eu fui convidado para fazer parte, e daí comecei a trabalhar nos ônibus. Antes disso eu já havia contribuído muito na elaboração do protótipo do 1º trólebus, que carinhosamente chamamos de “Vereda Tropical". Eu vou falar dele mais adiante...

TB: Por que a Mafersa era carinhosamente chamada de "Mãefersa"?
 

HR: Todos os funcionários que entravam na MAFERSA aprendiam, antes de mais nada, a respeitar as limitações e o potencial de cada colega de trabalho. A MAFERSA tinha um corpo de diretores nota dez e todo o corpo gerencial era muito bom. A gente aprendia a valorizar o nosso trabalho e sentíamos uma alegria enorme em acordar cedo e entrar as 7 da matina por lá...


Aprendi a ser o que eu sou profissional e pessoalmente. A cultura na MAFERSA era de trabalho em equipe pra valer. Como não chamar essa empresa de “Mãefersa”? Brincávamos que todo segundo domingo de Maio, tínhamos que colocar
um buquê de flores na entrada da empresa.

TB: Como nasciam os projetos, por exemplo dos trólebus: a Mafersa que decidia de acordo com pesquisa de mercado ou o cliente que determinava as especificações e características?


HR: Bom, vamos focar nos trólebus e ônibus, que esse é o tema central do nosso encontro de hoje, correto?

 

Então, a ideia de desenvolvermos os trólebus, surgiu da baixíssima demanda por trens na época, por volta de 1.984, e pelas pouquíssimas perspectivas de novas encomendas. Buscou-se, então uma solução que ao menos nos desse algum retorno financeiro para que fossem preservados os empregos ameaçados. De 1.980 até 82, havíamos cortado quase a metade dos funcionários, com muita tristeza, posso te dizer, com toda a sinceridade...

Utilizamos nosso “know-how” em trens, tanto na tração elétrica como em estruturas monobloco e desenvolvemos os trólebus Padron, brilhantemente abordados em seu trabalho perfeito “A História dos Trólebus Mafersa”. Quem quiser saber mais e ter maiores detalhes, é um trabalho impecável e de leitura obrigatória de todo aficionado pelo assunto!

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A Mafersa foi um marco na história dos transportes do Brasil pois trouxe importantes contribuições para o setor.

Foi a maior e mais importante fabricante brasileira de material ferroviário, tendo produzido desde a sua fundação mais de 1.200 carros, além de rodas e eixos ferroviários.

Seus ônibus e trólebus uniam a praticidade do transporte sobre pneus incorporando elementos de qualidade dos transportes ferroviários. As linhas de desenho, as soluções de ergonomia e a durabilidade da carroceria tinham padrões até então pouco vistos na indústria nacional, com inúmeras inovações na mobilidade urbana à época.

A empresa tornou-se um símbolo da cidade de São Paulo.

(http://vfco.brazilia.jor.br/vag/fabricantes/Mafersa/fabricas.shtml)

O time de Engenharia da empresa era nota 10 e o projeto dos ônibus foi um enorme desafio, pois tivemos que projetar e estudar as montagens de tudo, pois naquela época era muito difícil de se obter informações do assunto, pois quem as tinha, protegia a sete chaves. O assunto Padron do GEIPOT gerou diversos projetos tanto dos trólebus como dos veículos diesel e a briga foi boa, no bom sentido.

Nosso trabalho de Pesquisa e Desenvolvimento foi descomunal. Fabricamos seções de teto e laterais e testamos em nosso laboratório de ensaios estruturais, visando resistência e leveza, para obtermos um baixo consumo de energia.
Desenvolvemos uma tecnologia de gravação dos sinais digitais de uma via e posterior reprodução dos mesmos em laboratório, que foi reconhecido internacionalmente. Quantas madrugadas passamos rodando com veículos instrumentados na Avenida Celso Garcia, aqui em São Paulo, que era referência de bom e de ruim que se tinha na época... rsrsrs
Depois, com os dados em mãos, conseguíamos reproduzir “em casa”, todos os solavancos e acidentes da via para se testar as estruturas e com isso determinar uma melhor vida útil da estrutura do veículo.

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Protótipo do trólebus Mafersa/Villares, o famoso "Vereda Tropical", em testes na Avenida Celso Garcia, na cidade de São Paulo/SP.

(http://www.revistaportaldoonibus.com/bancodeimagem/displayimage.php.?album=search&cat=0&pos=1)

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Ensaio de fadiga da estrutura do trólebus no laboratório da Mafersa.

(Folheto "Trólebus Mafersa: Trólebus de 2 eixos com estrutura integral e modular")

TB: O know-how para a produção do ônibus diesel Mafersa surgiu mesmo a partir da experiência dos trólebus?
 

HR: Sim sim! Assim como os trens, o horizonte dos veículos movidos a energia elétrica estava sombrio e o governo tirou o subsídio da energia elétrica das operadoras de trólebus. Isso desestimulou o mercado e nos colocou novamente em uma situação muito delicada... Até que tivemos a ideia de desenvolvermos o M210. Pensamos: “Já temos um produto rodoviário. Vamos colocar um motor nele!”


Daí começou a busca por um parceiro que pudesse fornecer o trem de força! Na época, a Cummins trabalhava num projeto de repotenciamento de velhos caminhões Mercedes com seu novíssimo motor 6CT8.3 Turbo, um motor de concepção muito moderna, com menor número de componentes e muito econômico.


Isso nos levou de volta à prancheta (sim, naquela época o AutoCad ainda engatinhava!) para estudarmos toda a modificação da parte traseira e do estrado do ônibus... O desafio era projetarmos os reforços estruturais para um “balanço” maior do motor e câmbio traseiro, pois no trólebus o motor era central.


Tivemos que projetar um sistema de trambulação totalmente novo e revolucionário para a troca de marchas da caixa S6-90 da ZF. A solução foi um sistema de mancais oscilantes, que “tirava” o peso de todo o tubo do trambulador. Era um sistema bem legal, mas chegamos a ficar três dias seguidos dormindo na empresa para acertarmos o balanceamento do sistema... Ao final do 3º dia seguido de luta, nosso então Presidente chegou com um monte de repórteres para fazerem matérias sobre o M210, sem nos avisar!!!! Quase enfartamos, mas o protótipo se comportou maravilhosamente bem durante o passeio. Mas oramos todo o percurso! Rsrsrs.

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O ônibus convencional diesel Mafersa surgiu a partir do projeto dos trólebus Mafersa.

O protótipo inclusive foi montado em uma plataforma de trólebus, conforme observa-se nas imagens acima.

(Acervo Hélio Ronzani)

TB: - Por que todos os trólebus Mafersa tinham seus componentes elétricos Villares? Como era essa parceria?
 

HR: Como mencionei anteriormente, todo mundo que tinha sistemas de tração, tinha contrato de exclusividade, cada um com seu parceiro.


A MAFERSA já tinha parceria de longa data com a Villares na área ferroviária e estavam desenvolvendo há algum tempo, um sistema de chopper bastante moderno. A parceria foi inevitável e bem-sucedida. Nossos veículos tinham um arranque e aceleração bastante suaves, bem como uma frenagem regenerativa bastante eficiente.

TB: Conte pra nós a história do protótipo de trólebus de 2 eixos, o famoso "vereda tropical".

 

HR: Esse desenvolvimento marcou uma época para a MAFERSA como um todo, tanto tecnicamente como industrialmente e acrescentaria, corporativamente.

Tivemos que ter uma mudança radical no modo de pensar, enraizado na cultura ferroviária, onde o produto, além de uma vida útil enorme, dava uma lucratividade espetacular. Todos os processos de fabricação tiveram que ser simplificados e/ou automatizados. Estávamos acostumados a trabalhar com as estruturas dos trens em aço inoxidável e de repente, tivemos que desenvolver estruturas em aço SAC-50, um primo pobre do inox. Tudo muda: ajustes de processo, máquinas de solda, dispositivos, etc... Foi uma grande mudança, que acabaria refletindo no futuro da parte ferroviária da empresa, para melhor.


O trólebus de 2 eixos precisava estar funcional até uma determinada data, porque tínhamos que colocá-lo em testes na CMTC para uma avaliação crítica completa. Estava tudo indo muito bem, mas faltava uma identidade para o protótipo; algo que marcasse e impactasse essa apresentação. Nosso Departamento de Design e Estilo teve uma ideia, baseada em uma novela que estava fazendo um grande sucesso naquela época, a “Vereda Tropical”, daí a pintura com motivos tropicais. Inevitavelmente ele acabou ganhando esse apelido carinhoso na empresa.

TB: Uma característica marcante dos ônibus e trólebus da Mafersa é o seu painel de comando em formato poligonal. Como surgiu essa ideia?

 

HR: Olha, se formos explicar todo o conceito nos mínimos detalhes, seria melhor fazermos uma outra entrevista, mas vou tentar simplificar esse ponto.


Quando construímos trens, existe um cálculo de “ride comfort” ou conforto de viagem. Esse cálculo ajuda o projeto das suspensões primárias e secundárias do trem, levando-se em conta o perfil da via, a lotação da composição e o tempo de viagem. O objetivo seria oferecer solução mínima de conforto para quem tem que viajar no trem uma hora ou mais, após um cansativo dia de trabalho. Hoje em dia esse estudo é mais completo e complexo e até a escolha das cores do Interior dos carros ferroviários é calculada.

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O painel de comando poligonal do trólebus Mafersa, durante testes de vibração do veículo na fábrica.

(Acervo Mafersa - colaboração IFN Contagem/MG)

Mas uma viagem também precisava ser a melhor possível nos nossos trólebus e ônibus. Primeiro fizemos um estudo ergonômico do salão de passageiros, levando-se em conta dados estatísticos da população brasileira masculina e feminina adulta, para podermos definir algumas soluções em termos de distância entre bancos, alguns pega-mãos e colunas, etc. Mas, como o próprio nome já diz, o passageiro é passageiro!


Nossa preocupação era também com as pessoas que passavam a maior parte da jornada de trabalho dentro dos ônibus: os motoristas e cobradores.


E lá fomos nós para os estudos! Elaboramos um posto de cobrança e um posto de comando em escala natural e convidamos cerca de 30 motoristas e cobradores para avaliarem nossos estudos, sob a forma de protótipo ali à frente deles. Lá eles puderam se sentar, girar o volante, olhar nos espelhos retrovisores, acionar as portas, usar alavancas, tanto de freio de estacionamento, como de trambulação, no caso do M210, testar a inclinação dos pedais, entrada e saída dos respectivos postos. Definimos um modelo de assento, tanto para o cobrador como para o motorista, com ajustes variados, tais como, peso, apoio lombar, ajuste de altura, inclinação do assento, apoio de cabeça, apoio para os braços, etc... Todos eles foram entrevistados durante essa avaliação, um a um! Nada foi esquecido. Tudo anotado, algumas alterações a serem feitas, mas a opinião era unânime: nunca se sentaram em postos tão confortáveis como aqueles. Alguns até perguntaram quando os veículos estariam circulando, para que eles pudessem testá-los “em combate”...

TB: Fale um pouco da qualidade dos produtos Mafersa. Pelo que consta era uma preocupação constante da marca. Prova disso são os trólebus de Santos fabricados na década de 1980 e ainda operacionais.


HR: Como também alguns M210, que estão rodando até hoje... Nunca fizemos nada demais; somente nos preocupamos com o conforto e a segurança dos usuários. Isso resulta em um produto honesto e bem construído. A Qualidade é uma consequência desses fatores.

 

 


TB: Como explicar uma empresa modelo, nacional, com produtos e soluções a frente de seu tempo se acabar como aconteceu com a Mafersa?


HR: Muita gente me pergunta isso. Infelizmente fatores conjunturais e políticos fizeram com que o nome MAFERSA desaparecesse, assim como a COBRASMA e a SANTA MATILDE. Com a escassez de encomendas ferroviárias e a grande concorrência dos encarroçadores de ônibus e o conceito do ônibus Padron se desvanecendo, muitos produtos bem mais baratos, mas com menos qualidade passaram a disputar com os ônibus mais bem elaborados o mesmo mercado.


Imaginem uma situação em que um ônibus com motorização dianteira disputava edital com um mesmo veículo com motor traseiro. Não tinham a menor chance!


Mas o que eu mais me orgulho é de ter feito parte dessa história e poder estar compartilhando tudo isso com vocês! Gostaria de agradecer novamente a oportunidade e fico à disposição de todos para outras histórias sobre os Mafersa.


Um enorme abraço a todos! Fiquem bem!

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"Trólebus Mafersa - Trólebus de 2 eixos com estrutura integral e modular": publicação da Mafersa sobre o protótipo "Vereda Tropical", onde ilustra todo o processo de produção e testes do veículo.

(Clique na imagem acima para baixar o documento)

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"A História dos Trólebus Mafersa": publicação do site "Trólebus Brasileiros" com informações históricas e técnicas dos trólebus padron e articulado, além do protótipo construído para o Consórcio Eletrobus de São Paulo.

(Clique na imagem acima para baixar o documento)

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